sábado, 21 de abril de 2012

A Juventude como sintoma da cultura - Maria Rita Kehl

Difícil precisar o que é juventude. Quem não se considera jovem hoje em dia? O conceito de juventude é bem elástico: dos dezoito aos quarenta, todos os adultos são jovens. A juventude é um estado de espírito, é um jeito de corpo, é um sinal de saúde e disposição, é um perfil do consumidor, uma fatia do mercado onde todos querem se incluir. Parece humilhante deixar de ser jovem e ingressar naquele período da vida em que os mais complacentes nos olham com piedade e simpatia e, para não utilizar a palavra ofensiva – velhice – preferem o eufemismo “terceira idade”. Passamos de uma longa, longuíssima juventude, direto para a velhice, deixando vazio o lugar que deveria ser ocupado pelo adulto. O cineasta Jean-Luc Godard, sempre antenado nos sintomas do sofrimento e da alienação contemporâneos, faz os personagens de seu último filme, Elogio ao amor, repetirem insistentemente a pergunta: qu’est que c’est un adult? Evidentemente Godard deixa a questão sem resposta. 


O prestígio da juventude é recente. ''O Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos'', escreveu Nelson Rodrigues em uma crônica sobre sua infância na rua Alegre. ''Os moços não tinham função, nem destino. A época não suportava a mocidade”. O escritor estava se referindo aos sinais de respeitabilidade e seriedade que todo moço tinha pressa em ostentar, na primeira metade do século XX. Um homem de 25 anos já portava o bigode, a roupa escura e o guarda-chuva necessário para identificá-lo entre os homens de 50, e não entre os rapazes de 18. Homens e mulheres eram mais valorizados ao ingressar na fase produtiva/reprodutiva da vida do que quando ainda habitavam o limbo entre a infância e a vida adulta chamado de juventude ou, como se tornou hábito depois da década de 1950, de adolescência. 


Já o futuro escritor do ano 2030, quando escrever suas lembranças da vida no início do terceiro milênio, poderá afirmar: ''O Brasil de 2004 era uma paisagem de jovens''. Há mais de quarenta anos somos todos jovens. Sempre que a expressão “no meu tempo...” é empregada, ela se refere aos anos dourados da vida, a juventude. Pois foi uma ou duas décadas antes do “meu tempo”, que os adolescentes e jovens começaram a sair de uma certa obscuridade culposa e obediente à qual discursos médicos e morais os haviam relegado, para se transformarem em uma faixa da população privilegiada pela industria cultural. 


A puberdade como fase de amadurecimento sexual das crianças, que marca a transição do corpo infantil para as funções adultas da procriação, tem lugar em todas as culturas. Da Grécia clássica às sociedades indígenas brasileiras, o/a púbere é reconhecido enquanto tal, e a passagem da infância para a vida adulta é acompanhada por rituais cuja principal função é reinscrever simbolicamente o corpo desse/a que não é mais criança, de modo a que passe a ocupar um lugar entre os adultos. Mas o conceito de adolescência, que se estende em certos países até o final da juventude (hoje em dia não hesitamos em chamar de adolescente a um moço de vinte anos), tem uma origem e uma história que coincide com a modernidade e a industrialização. A adolescência na modernidade tem o sentido de uma moratória, período dilatado de espera vivido pelos que já não são crianças, mas ainda não se incorporaram à vida adulta. O conceito de adolescência é tributário da incompatibilidade entre maturidade sexual e o despreparo para o casamento. Ou, também, do hiato entre a plena aquisição de capacidades físicas do adulto – força, destreza, habilidade, coordenação, etc – e a falta de maturidade intelectual e emocional, necessária para o ingresso no mercado de trabalho. O aumento progressivo do período de formação escolar, a alta competitividade do mercado de trabalho nos países capitalistas e, mais recentemente, a escassez de empregos, obrigam o jovem adulto a viver cada vez mais tempo na condição de ‘adolescente”, dependente da família, apartado das decisões e responsabilidades da vida pública, incapaz de decidir seu destino. 


Nessas circunstâncias, a adolescência só poderia se tornar uma idade crítica. Mas como, na economia capitalista, do boi se aproveita até o berro, essa longa crise que alia o tédio, a insatisfação sexual sob alta pressão hormonal, a dependência em relação à família e a falta de funções no espaço público, acabou por produzir o que as pesquisas de marketing definem como uma nova fatia de mercado. A partir daí – viva o jovem! Passou a ser considerado cidadão porque virou consumidor em potencial. De início, o fenômeno tinha o vigor e a beleza caótica típicos do retorno do recalcado. ''Jovem'' era o significante para tudo o que até então vivia nos porões da civilização. Jovem era a inteligência quando se aventurava a pensar para além dos cânones universitários. Jovem era a rebeldia contra os padrões estabelecidos, contra a moral hipócrita que sacrificava os prazeres do corpo em nome de uma dignidade vazia. Jovem era a adesão a utopias políticas que propunham um futuro melhor. Não deixa de ser sintomático que hoje as pessoas de quarenta, cinqüenta anos, continuem a se interessar apaixonadamente pela política enquanto os adolescentes parecem conformados em fazer da luta pela cidadania mera afirmação dos direitos do consumidor. Mas também não preciso repetir que forças bem mais poderosas do que os anseios de uma ou duas gerações de filhos, logo entraram em jogo. Que as forças de capital – as mesmas que contribuíram para evocar espíritos juvenis adormecidos e provocar a onda de demandas jovens da década de 1960 – com seu senso imbatível de oportunidade, souberam reorganizar o caos em torno da chamada lógica do mercado. Ser jovem virou slogan, virou clichê publicitário, virou imperativo categórico - condição para se pertencer a uma certa elite atualizada e vitoriosa. Ao mesmo tempo, a ''juventude'' se revelava um poderosíssimo exército de consumidores, livres dos freios morais e religiosos que regulavam a relação do corpo com os prazeres, e desligados de qualquer discurso tradicional que pudesse fornecer critérios quanto ao valor e à consistência, digamos, existencial, de uma enxurrada de mercadorias tornadas, da noite para o dia, essenciais para a nossa felicidade.


Isleide Fontenelle, em seu minucioso estudo sobre a expansão da marca McDonald’s nos Estados Unidos e em todo o planeta, situa nos anos 1950, anos dourados do pós-guerra, a emergência de uma cultura adolescente na sociedade norte americana. 


A “cultura dos jovens” de que se passa a falar nos anos 60 começara bem antes e já se podiam vislumbrar todas as suas características no início dos anos 50. Era o perfil de um adolescente diferente das gerações anteriores, em função de seu... “número, riqueza autoconsciência. Tratava-se da primeira geração de adolescentes norte americanos privilegiados... A figura do adolescente que de tal modo emergia era associada, sobretudo, à vida urbana e encontrava seu hábitat na high school – que parecia transformada num cosmos em si mesmo – com os clubes, as atividades esportivas, e outras atividades e lugares acessórios como a drugstore, o automóvel, o bar para jovens”. (...) Uma geração vista como problemática mas, também, como espelho refletor da sociedade americana do pós-guerra: “muita da insistência sobre os jovens como consumidores – novo e gigantesco mercado que se abria à venda de Coca-Cola, goma de mascar, balas, discos, roupas, cosméticos, acessórios para carros e carros usados – podia ser transmitida, apesar dos tons de escândalo, ao prazer secreto de ver confirmada a filosofia do consumo que representava uma bíblia do bem-estar americano ”.


Essa transformação do adolescente em fatia privilegiada do mercado consumidor inaugurada nos Estados Unidos e rapidamente difundida no mundo capitalista, trouxe alguns benefícios e novas contradições. Por um lado, a associação entre juventude e consumo favoreceu o florescimento de uma cultura adolescente altamente hedonista. O adolescente das últimas décadas do século XX deixou de ser a criança grande, desajeitada e inibida, de pele ruim e hábitos anti sociais, para se transformar no modelo de beleza, liberdade e sensualidade para todas as outras faixas etárias. O adolescente pós moderno desfruta de todas as liberdades da vida adulta mas é poupado de quase todas as responsabilidades. 


Parece que ao escrever isso estou limitando o foco dessa análise aos adolescentes da elite, os únicos que de fato podem consumir e desfrutar da condição de jovens adultos cujos desejos e caprichos são sustentados pelos pais. Não é bem assim. Na sociedade pautada pela indústria cultural, as identificações se constituem através das imagens industrializadas. Poucos são aqueles capazes de consumir todos os produtos que se oferecem ao adolescente contemporâneo – mas a imagem do adolescente consumidor, difundida pela publicidade e pela televisão, oferece-se à identificação de todas as classes sociais. Assim, a cultura da sensualidade adolescente, da busca de prazeres e novas “sensações”, do desfrute do corpo, da liberdade, inclui todos os adolescentes. Do filhinho-de-papai ao morador de rua, do jovem sub empregado que vive na favela ao estudante universitário do Morumbi (ou do Leblon), do traficante à patricinha, todos os adolescentes se identificam com o ideal publicitário do adolescente hedonista, belo, livre, sensual. O que favorece, evidentemente, um aumento exponencial da violência entre os que se sentem incluídos pela via da imagem mas excluídos das possibilidades de consumo. Volto a esse ponto mais adiante. 


O efeito paradoxal do campo de identificações imaginárias aberto pela cultura jovem é que ele convoca pessoas de todas as idades. Quanto mais tempo pudermos nos considerar jovens hoje em dia, melhor. Melhor para a indústria de quinquilharias descartáveis, melhor para a publicidade – melhor para nós? O fato é que nas últimas décadas viramos jovens perenes. Por que não? Se no tempo de Nelson Rodrigues todos queriam ser velhos; se cada época elege um período da vida para simbolizar seus ideais de perfeição – que lei, moral ou natural, deve determinar os critérios de maturação humana, os padrões de longevidade, o limite para o que podemos exigir ou desfrutar de nossos corpos? Se ainda não se sabe do que a máquina humana, feita de apetites e de linguagem, é capaz, por que o poder da cultura, do dinheiro, do cinema e da televisão não podem congelar cinco, seis gerações num estado de juventude perpétua? O ponto de vista da psicanálise.


Freud escreveu a respeito da adolescência muito antes dessa “emancipação”, quando só era possível observar os efeitos patogênicos da moratória sexual. “A metamorfose da puberdade” é o último e o mais enxuto de seus Três ensaios para uma teoria sexual (1905). Como o foco de sua análise é a sexualidade, Freud privilegia no adolescente o desenvolvimento de uma nova finalidade sexual – a genitalidade, em contraste com o polimorfismo que caracteriza a sexualidade infantil – concomitante ao amadurecimento dos órgãos genitais, que se tornam aptos para exercer sua função procriativa. O “manifesto crescimento dos genitais externos” aliado ao desenvolvimento dos genitais internos, culmina na constituição de “um complicado aparato que espera sua utilização ”. As conseqüências dessa espera, à época bastante prolongada, foram examinadas por ele em textos posteriores, nos quais abordou os efeitos patogênicos do tabu da virgindade ou a relação entre moral sexual e neurose. 


O aspecto mais relevante dos Três ensaios.... no que se refere à adolescência, é a intensificação do complexo de Édipo produzida em função do amadurecimento da sexualidade genital. Para Freud, os “restos” não resolvidos do complexo de Édipo infantil, que ficaram como que em repouso durante o período de latência – aproximadamente entre os sete e os doze, treze anos – voltam a produzir efeitos perturbadores sobre o psiquismo a partir da puberdade. A “crise da adolescência” é compreendida, na psicanálise, como um retorno da crise edipiana em proporções aumentadas; no adolescente os desejos incestuosos se tornam mais ameaçadores em função da maturidade hormonal/genital, e a rivalidade edípica com o genitor do mesmo sexo se intensifica, aliada às moções de liberdade próprias da ambigüidade (não mais criança/ ainda não adulto) desse período. 


Um estudioso contemporâneo da adolescência. Jean-Jacques Rassial , escreve que o adolescente se vê, de uma hora para outra, “excedido por seu corpo”, sem base de apoio para constituir uma atitude, uma postura, uma “personalidade” que acompanhem seu crescimento físico. Para isso, ele tenta se valer de objetos-fetiche: o sutiã na menina, o barbeador no menino, etc, que sustentem, como apêndices do corpo, o crescimento que ele reivindica. A análise de Rassial nos ajuda a compreender o lugar privilegiado do adolescente como consumidor, em todas as classes sociais. Caros ou baratos, vendidos em shopppings ou em camelôs, os acessórios compõem a mascarada adolescente, funcionando como objetos transicionais que ajudam na difícil tarefa de reinscrever esse novo corpo, estranho até para o próprio sujeito, nesse lugar também de transição entre a infância e a vida adulta que ele passa a habitar. Em nossas sociedades laicas, em que faltam ritos de passagem para sinalizar o ingresso na vida adulta, os objetos de consumo e os espaços próprios para freqüentação adolescente – a lanchonete, o baile funk, a boate, os mega shows de rua – substituem os ritos característicos das culturas pré modernas. Os jovens também inventam seus próprios ritos. Penso que o consumo de drogas leves como a maconha ou a cerveja funciona como prova ou desafio para decidir a entrada dos novatos em certos grupos, estabelecendo a linha não só entre os caretas e os entendidos, mas entre os que são vistos como ainda crianças e os que já se consideram com um pé na vida adulta. 


Enquanto as sociedades fundadas na transmissão oral preservavam, nos ritos iniciáticos, o espaço potencial desse não-lugar da adolescência, pondo em cena o que aí entra em jogo de “morte” e de “renascimento, as leis escritas, por sua vez, só podem definir limites e rejeitar a dimensão mesma de um fora-de-lugar, de um lugar outro. (...) De certo modo, ao contrário da utopia, o bando constitui, na atualidade, um verdadeiro grupo social de tipo tribal. (...) ...é ponto de referência, aquém ou além da identidade civil, de uma outra dimensão do sujeito. 


Rassial relaciona (como Freud, em outro texto ) a proteção oferecida pelo grupo com os atos de delinqüência bastante freqüentes entre jovens de todas as classes sociais. Mas ele observa também que a delinqüência é tanto patologia de um ou outro sujeito particular quanto “da sociedade em seu conjunto”. Podemos, por exemplo, entender o aumento da delinqüência juvenil nos nossos dias entre os efeitos do que venho chamando de teenagização da cultura ocidental. O primeiro que me ocorre é o seguinte: todo adulto sente uma certa má consciência diante de sua experiência de vida. Se a regra é viver com a disponibilidade, a esperança e os anseios de quem tem 13, 15 ou 17 anos, que fazer da seletividade, da desconfiança e até mesmo da consolidação de um certo perfil existencial mais definido, inevitáveis para quem viveu 40 ou 50 anos? O adulto que se espelha em ideais teen se sente desconfortável ante a responsabilidade de tirar suas conclusões sobre a vida e passá-las a seus descendentes. Isso significa que a vaga de ''adulto'', na nossa cultura, está desocupada. Ninguém quer estar ''do lado de lá'', o lado careta, do conflito de gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou. Mães e pais dançam rock, funk e reggae como seus filhos, fazem comentários cúmplices sobre sexo e drogas, frequentemente posicionam-se do lado da transgressão nos conflitos com a escola e com as instituições.


Esta liberdade cobra seu preço em desamparo: os adolescentes parecem viver num mundo cujas regras são feitas por eles e para eles, já que os próprios pais e educadores estão comprometidos com uma leveza e uma nonchalance jovem. “Tô nem aí”, diz o refrão de uma cançoneta da moda no verão de 2004. Tô nem aí, lê-se estampado nas camisetas usadas por mães quarentonas e pais bebedores de cerveja, na beira da praia, vivendo e deixando viver seus rebentos. Poderia ser uma atitude saudável se, em vez de tolerância e compreensão, não revelasse uma grande omissão em oferecer parâmetros mínimos para orientar o crescimento dos filhos. Não que os pais ''de antigamente'' soubessem como os filhos deveriam enfrentar a vida; mas pensavam que sabiam, e isso era suficiente para delinear um horizonte, constituir um código de referência - ainda que fosse para ser desobedecido. Quando os pais dizem: ''Sei lá, cara, faz o que você estiver a fim'', a rede de proteção imaginária constituída pelo o que o Outro sabe se desfaz, e a própria experiência perde significação. E, como nenhum lugar de produção de discurso fica vazio muito tempo sem que algum aventureiro lance mão, atenção! – o Estado autoritário, puro e simples, pode vir fazer as vezes dos adultos que se pretendem teen. Neste caso, em vez da elaboração da experiência, teremos ''razões de Estado'' (ou pior, razões do Banco Mundial) ditando o que fazer de nossas vidas.
A desvalorização da experiência esvazia o sentido da vida. Não falo da experiência como argumento de autoridade - ''eu sei porque vivi''. Sobretudo numa cultura plástica e veloz como a contemporânea, pouco podemos ensinar aos outros partindo da nossa experiência. No máximo, que a alteridade existe. Mas a experiência, assim como a memória, produz consistência subjetiva. Eu sou o que vivi. Descartado o passado, em nome de uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de suportar.


Parece contraditório supor que uma cultura teen possa ser depressiva, sobretudo quando se aposta no império das sensações - adrenalina, orgasmo, cocaína - para agitar a moçada. Mas é o que se tem observado, pelo menos entre os jovens de classe média, que recebo no consultório. Depressão e, o que é mais preocupante, crises fóbicas – que a psiquiatria contemporânea batizou de pânico para transformar a angústia em sintoma medicável. 


Pânico: entrar no mundo adulto sem auxílio dos adultos, que querem todos pertencer ao mundo jovem. Sem modelos identificatórios. Pânico: entrar na adolescência e Ter que responder ao imperativo do gozo que a cultura lança sobre essa faixa etária. Paranóias, jovens que se recusam a sair do quarto, medo das ruas, angústia braba. 


A cultura da malandragem adolescente


“Problemas com a escola eu tenho mil, mil fitas/ é inacreditável, mas seu filho me imita./ No meio de vocês ele é o mais esperto/ ginga e fala gíria – gíria não, dialeto! (....) Esse não é mais seu, tomei, cê nem viu/ entrei pelo seu rádio, fiuuu...subiu!” No tom provocativo de sempre e com grande talento de poeta, Mano Brown lançou seu desafio àqueles que ele chama de “senhores de engenho” no último CD dos Racionais, Vida Louca, de 2002: pelas ondas livres do rádio, o rapper negro da periferia “rouba” a identidade do filho da burguesia branca. Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC’s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu “rithm and poetry” ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela. 


Alguns pais se preocupam – não sei se deveriam. Cada vez mais os adolescentes adotam as roupas, a gíria ( “gíria não, dialeto!”), a música, a estética da favela. Uma amiga me conta que os amigos do filho tomaram os personagens do filme Cidade de Deus como ídolos. O espantoso é que os garotos não têm idade para assistir ao filme; identificaram-se com a representação da representação: o carisma dos personagens é transmitido pelos clips de divulgação na TV, ou em conversas com amigos mais velhos. Outro conhecido, morador do Pacaembu, diz que o filho de 15 anos superou uma crise de insegurança e ansiedade quando começou a freqüentar o setor mais barra pesada da quadra dos Gaviões da Fiel, tentando confundir-se com os torcedores da periferia. Um colega de minha filha fez amizade com os garotos da favela vizinha à sua casa e sai todas as noites para grafitar muros e fumar com eles. 


Pode ser uma estratégia de proteção. Para um adolescente em idade de começar a sair sozinho pelas ruas – felizmente, nem todos se conformam com a vidinha claustrofóbica de shopping center, motorista e DVD – é mais seguro ser confundido com um “mano” do que com um “playboy”. Alguns fazem pose de bandidos: “É melhor ser amigo dos caras do que passar pelo otário que eles vão assaltar”. Uma das polarizações que nossa sociedade violenta e competitiva criou não é entre ricos e pobres, brancos e negros: é entre espertos e otários. Claro que para o garoto de classe média, posar de “esperto” não garante muita coisa: os “enquadres” da polícia podem oferecer tanto perigo quanto os eventuais encontros com um assaltante. 


Mas não é só de proteção que se trata. Os adolescentes não estão tentando enganar os bandidos: estão se identificando, de fato, não necessariamente com os criminosos mas com os marginalizados, os meninos e meninas da periferia e das favelas. Identificam-se com a cultura hip hop: rap, skate, grafite, “bombeta e moleton”. Há um aspecto político nesta atitude, é claro. Cresce entre os adolescentes uma recusa dos padrões consumistas predominantes em sua classe social e uma busca de "autenticidade”, de valores que façam mais sentido no mundo injusto em que vivem. Verdade que é uma recusa ingênua, pois também passa pelo consumo: trata-se de comprar outras roupas, outros CDs, freqüentar outras casas noturnas. Mas como toda estética comporta uma ética, a escolha do modelo da periferia faz alguma diferença. É como se só fosse possível encontrar alternativas para a falta de sentido da vida pautada pelo consumo identificando-se com aqueles que não têm recursos para consumir. 


Vejo também um movimento de exogamia, de saída do círculo protegido da família para o vasto mundo – e o mundo fora da família, hoje, tem sido insistentemente apresentado à criança e ao jovem como o mundo do perigo. Só que não é possível viver indefinidamente protegidos do mundo. Vamos a ele, então. Sejamos perigosos. 


Nada disso é muito grave. É preferível, para a formação moral de um adolescente, que ele veja o mundo como uma selva a desbravar do que como uma vitrine de butique. O que é preocupante, a meu ver, não é a identificação dos meninos da elite com a estética dos excluídos, mas a identificação com a violência. O preocupante é quando a curiosidade e a ousadia em romper com o circuito estreito da vida burguesa desemboca na identificação com a estética da criminalidade. Que não é exatamente a linguagem dos criminosos – esta, só conhecemos de fato quando estamos na posição de vítimas. O “estilo” da vida bandida que os adolescentes tentam imitar é a linguagem elaborada e estetizada pelo cinema, pelo rap, pela televisão.


O fenômeno das identificações dos “incluídos” com os marginais revela um efeito inesperado da nova onda de filmes que tentam dar visibilidade aos excluídos. São muitos. Evoco rapidamente: O invasor, Uma onda no ar, Ônibus 174, Cidade de Deus, Carandiru e outros, só do ano passado para cá. É que vivemos em uma cultura em que o espetáculo dita as normas de cidadania, organiza as relações sociais, estabelece valores, formata as identificações. Os filmes que denunciam a miséria, a criminalidade, a violência policial, são presas desta contradição: ao tentar mostrar aquilo que a sociedade preferia ignorar, estão necessariamente espetacularizando o mal. 


Será inevitável que todas as tentativas de denunciar a violência pela via do imaginário cinematográfico (ou televisivo) acabem produzindo a identificação do público com o próprio mal que se pretende contestar? Por que a realidade do crime, transformada em espetáculo, parece criar uma aura positiva em torno da imagem do criminoso? Qual será o carisma do personagem Zé Pequeno, traficante psicopata de Cidade de Deus, que faz com que um grupo de pré adolescentes o eleja como símbolo da força, da ousadia e da radicalidade que eles desejam para si? 


É verdade que a violência confere poder, ainda que ilegítimo, a quem faz uso dela. Impotentes diante do caos social, adolescentes flertam com a fantasia de se tornar tão violentos (ou poderosos) quanto os bandidos que os intimidam. 


Por outro lado, há um efeito identificatório que é próprio da lógica do espetáculo. A espetacularização do crime, independente das intenções do autor ou do cineasta, faz do criminoso o símbolo da potência que a imagem lhe confere. Potência de visibilidade. Potência de ser. É necessário construir uma nova ética da imagem para dar conta desta contradição.


A cultura da malandragem entre os adultos


Os pais das famílias de classe média andam preocupados com a falta de ética na conduta dos adolescentes. Temem as más influências dos “maloqueiros” do bairro – mas não percebem que os piores exemplos de irresponsabilidade e falta de educação provém da própria elite nacional, acostumada a conviver com uma série de práticas ilegais, de maior ou menor gravidade. Uma parte da classe dirigente brasileira considera que a lei só serve para enquadrar os outros. A lei é para os manés. Os espertos e os privilegiados sabem como se colocar acima, ou à margem dela. “Quem tem trinta contos de réis no Brasil não vai para a cadeia”, dizia Lampião.


Os adolescentes ricos convivem com essa criminalidade soft dentro, ou perto, de suas próprias casas. É o pai que oferece caixinha ao guarda para escapar a uma multa por excesso de velocidade, ou vai à escola pedir a cabeça do professor que reprovou, por razões justas, seu filho. Os pais que se apavoram quando um filho começa a fazer amizade com os favelados da vizinhança são os mesmos que contratam e demitem empregados sem pagar direitos trabalhistas e oferecem suborno aos fiscais da receita que descobrem as irregularidades de suas empresas. 


São mães que se consideram no direito de estacionar em fila dupla na porta da escola atrapalhando o trânsito, como se a rua fosse sua propriedade privada. Ou jogam latas de refrigerante e embalagens de comida pela janela do carro como se a cidade, onde caminham os “outros”, fosse sua lata de lixo. Esses pais estão ensinando a seus filhos que o dinheiro compra até o que não tem preço: a vergonha, a educação, a lei.


Uma vez, esperava um manobrista trazer o meu carro, na saída de uma casa de espetáculos. De repente um senhor furou a fila, tirou o manobrista de dentro do meu carro gritando que ele deveria pegar, com urgência, o seu Porsche. ‘’O senhor tem um Porsche, mas não tem educação?’’ perguntei. Imaginem se ele se incomodou. Pela sua lógica, quem pode pagar um carro importado pode dispensar as normas de bom convívio com os seus semelhantes. ‘’Se eu pago, eu posso’’, diz o pai de família burguês aos seus rebentos, sem imaginar que é por esse caminho que sua autoridade vai se desmoralizando até o ponto dele perder o respeito dos filhos. De um modo ou de outro, os adolescentes lhes respondem: se você quer que eu te obedeça, me pague.


A convivência com a criminalidade dos marginais e dos miseráveis acovarda e corrompe os adolescentes, principalmente quando estes perdem a confiança na justiça e na polícia que deveria proteger a sociedade toda. Mas a convivência com o cinismo e com a ilegalidade das práticas da elite corrompe e educa para o crime boa parte das novas gerações, de maneira muito mais profunda e mais eficiente.


Se para os meninos a saída do pânico pode ser a identificação com o marginal que o ameaça, para as meninas é a gravidez. Sinal, no corpo, que dá conta do imperativo de gozo e ao mesmo tempo apresenta um forte argumento para parar de gozar.


Meninas e mães


Se os meninos andam se fantasiando de bandidos para dar conta do mundo ameaçador que os espera e do imperativo de gozo que pesa sobre elas, as meninas do novo milênio estão virando mães cada vez mais cedo. Como as mulheres de tribos indígenas, ou como nossas bisavós – só que em outro contexto cultural – elas estão engravidando aos treze, catorze anos. Quase imediatamente depois de começarem – não sei se precocemente ou não, pois isso também depende da cultura – a ter experiências sexuais. 


As mães dessas adolescentes pertencem a uma geração que derrubou alguns tabus, tanto no que se refere à virgindade das mulheres quanto ao aborto, como solução considerada legítima para os casos de gravidez indesejada. Hoje, o aborto parece ter retomado o estigma da maldição que a Igreja e os conservadores lançaram sobre ele. As meninas grávidas ficam mais horrorizadas que seus pais ante a perspectiva de abortar. A afirmativa: “quero ter o meu filho”, já aparece pronta, sem contestação, tão logo a gravidez se confirma. A maternidade volta a ter prestígio na geração pós-feminismo.


Só que, ao contrário de nossas bisavós, ou das jovens mães indígenas, poucas das meninas-mães de hoje estão em condições de criar seus filhos como adultas. Quando têm a sorte de contar com o apoio familiar, continuam vivendo na casa dos pais, cuidando de seus bebês como meninas crescidas que ainda brincam de bonecas enquanto pai e mãe providenciam seu sustento.


As adolescentes grávidas são presas da contradição que atinge todos os adolescentes, na atualidade: o descompasso entre uma vida sexual ‘adulta’ que acompanha as condições da maturação biológica, e o lugar social de dependência em relação à família que lhe confere uma condição infantil. A liberação dos costumes beneficiou o adolescente com uma grande liberdade sexual, na mesma cultura em que meninos e meninas de dezessete, dezoito anos são considerados como pouco mais do que crianças. Vivem com a família, e, quando têm sorte, estudam, dependendo exclusivamente do trabalho dos adultos. As restrições crescentes do mercado de trabalho vão empurrando o final da adolescência para cada vez mais longe; nas classes média e alta, a perspectiva é de continuar os estudos bem além da graduação, prolongando com isso a dependência financeira. Mas apesar de todos os inconvenientes práticos que uma gestação na adolescência implica, há uma espécie de aceitação prévia da maternidade, que se ergue como valor incontestável acima dos percalços que acarreta. Espera-se que, desse ‘acidente’, decorra um novo sentido para a vida da menina. Que represente uma reviravolta positiva, ocasião para seu amadurecimento. Espera-se que a maternidade dê um jeito na vida da adolescente transgressora. 


Até poucas décadas atrás, a gravidez na adolescência era uma catástrofe ou uma vergonha na família. A virgindade valorizava as moças em idade de casar, e a gravidez precoce indicava algo de podre na família, incapaz de transmitir a uma das filhas o código da moral burguesa que lhe garantiria um casamento digno, no futuro. A possibilidade de um “com” casamento ficaria comprometida, assim como a possibilidade de sucesso em eventuais projetos profissionais. Até mesmo para o pai da criança, caso se apresentasse como co-responsável, o incidente traria o inconveniente de um casamento antes da hora, encerrando precocemente uma fase que não era só de estudos e formação profissional mas também de direito a diversão irresponsável que, até então, estava reservada aos adolescentes do sexo masculino.


O que significa essa valorização da gravidez e maternidade precoces, na mesma cultura que encara a adolescência como a fase áurea da vida, a ser desfrutada com mais liberdade que a dos adultos e com a mesma irresponsabilidade da infância? Como entender essa avaliação otimista, promissora da maternidade adolescente na mesma cultura que projeta sobre essa fase da vida os sonhos de impunidade, liberdade, falta de limites e o direito ao supremo individualismo, fazendo da adolescência o ideal de adultos, velhos e crianças?





Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pelo Departamento de Psicologia Clínica da PUC de São Paulo. Conferencista,
ensaísta e poeta. Desde 1974, publica artigos na imprensa sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão
e psicanálise. Esse artigo foi originalmente publicado em “Juventude e Sociedade: Trabalho, educação, cultura e participação”, compilação de artigos organizada por Regina Novaes e Paulo Vannuchi. Editora Perseu Abramo (2004).




Um comentário:

  1. Hoje o fato de alguns pais ainda se considerarem adolescentes dificulta a transmissão dos preceitos da moral e da ética e as diferenças das idades. pais e filhos pertencem a mesma "turma"sendo tão próximos que não existe autoridade.

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